Arte pela Vida: como projeto ajuda a salvar pessoas com HIV e Aids no Pará

Dezembro Vermelho reforça importância do combate ao vírus

01/01/2023 às 12h00 Atualizada em 01/01/2023 às 12h08
Por: Lucas Duarte
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Arte pela Vida (Foto: Arquivo do projeto)
Arte pela Vida (Foto: Arquivo do projeto)

Na época em que recebi a notícia, não existiam os antirretrovirais. Então, tomei medicações, como antibióticos, até virem os medicamentos adequados, em 1996. O início deste tratamento foi bem difícil, pois já havia a  chamada 'sentença de morte' para quem vivia com HIV e saber que a todo instante alguém próximo de mim morria, era péssimo para minha cabeça.

Amélia Garcia descobriu o HIV há 29 anos.

O depoimento que abre esta reportagem é de Amélia Garcia. Amélia descobriu que carregava o vírus causador da Aids há exatos 29 anos. Além de ter perdido pessoas próximas para a doença, a paraense viu o marido sucumbir pelo mesmo motivo. "Em dezembro de 1995, meu companheiro faleceu, aí ficou mais difícil a minha vida", recorda.

Foi durante uma doação de sangue, rotina que Amélia mantinha com frequência, que ela recebeu o diagnóstico. 

Para enfrentar o vírus e continuar vivendo, a paraense passou por um processo de transformação do medo para o prazer de viver uma vida normal. "Para chegar a este patamar de vida normal, com o tratamento, confesso que levei uns 20 anos, pois tanta coisa me ocorre", explica.

"Foi quando se descobriu que, quem era indetectável, era intransmissível. Aí que pude relaxar minha cabeça. Saber que, poderia ter a vida normal, claro tomando todos os cuidados de prevenção”, conta Amélia. 

A vida seguiu, onde hoje eu sei que, sou igual a qualquer pessoa, a diferença é que eu tomo medicação. Então não esquento a cabeça, tomo minha medicação e curto a vida.

Amélia Garcia descobriu o HIV há 29 anos.

Quando perguntada sobre os preconceitos, Amélia diz que aprendeu a lidar com o assunto. "Essa foi uma parte da minha vida que aprendi a lidar com muita garra, pois tive que enfrentar a sociedade, mostrando minha cara e assumindo que sou pessoa vivendo com HIV/Aids. Assim sofro menos e consigo levar este ensinamento a outras pessoas", conclui Amélia.

O HIV circula no Brasil há mais de 40 anos e muitos são os avanços para o controle da transmissão e cura no mundo todo.

De acordo com o Ministério da Saúde, quase 1 milhão de pessoas convivem com o vírus no país, mas um longo caminho tem sido percorrido pela Ciência e até aqui trouxe avanços que permitem que qualquer pessoa com HIV possa viver uma vida normal tranquilamente.

Com o tratamento cotidiano e o uso dos medicamentos indicados, o vírus fica indetectável, ou seja, não será transmitido por relação sexual, e a pessoa também não desenvolverá a Aids, que é a doença causada pelo vírus quando não tratado corretamente. 

Segundo a Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará (Sespa), em 2021 foram diagnosticados 2.946 casos de pacientes com HIV/Aids. Já em 2022, até o final de outubro, foram 2.096 casos. A Sespa informou, ainda, que em relação aos óbitos foram registradas 710 mortes pela doença em 2021 e 428, até outubro de 2022. Já em relação ao total de pacientes, 24.665 estão em tratamento nos municípios de residência.  

É importante destacar que os medicamentos antirretrovirais só surgiram no mundo após a década de 1980, para impedir que o vírus se multiplique no organismo. Eles não têm o poder de matar o HIV, mas ajudam a evitar o enfraquecimento do sistema imunológico . Por isso, o uso é fundamental para aumentar o tempo e a qualidade de vida de quem convive com o vírus.

Onde surgiu o vírus da Aids

A doença mesmo só foi identificada em 1981, mas segundo os cientistas, o histórico de transmissão é bem mais antigo. O que se sabe em pesquisas e artigos sobre o assunto é que surgiu a partir de um vírus chamado SIV, encontrado no sistema imunológico de alguns tipos de macacos, como os chimpanzés. Uma curiosidade é que esse vírus não deixa esses animais doentes, mas o SIV é altamente mutante, e teria dado origem ao vírus causador da Aids. 

Em reportagem da revista Superinteressante, de abril de 2011, os pesquisadores entrevistados acreditam que mesmo sem um consenso, o mais provável é que tenha surgido por volta de 1930, em tribos da África Central que caçavam ou domesticavam chimpanzés e macacos-verdes. Nas décadas seguintes, a doença teria permanecido restrita a pequenos grupos e tribos da África central, na região ao sul do deserto do Saara, mas alguns cientistas acreditam que o contato com o humano aconteceu séculos antes. 

Linha do tempo de fatos confirmados

  • Em 1959 aconteceu a primeira morte de um homem que morava onde hoje é o Congo e foi comprovada décadas depois, com um teste feito no sangue dele que estava congelado.
  • Em 1981, a Aids é reconhecida como doença e surgem vários relatos de casos em homossexuais nos Estados Unidos.
  • Também em 1981 morreu o chamado “paciente zero” nos EUA. O nome HIV só surgiu em 1986 e a primeira medicação, o AZT, só foi criada em 1987.
  • No Brasil, o primeiro caso de HIV foi registrado em 1982.

O Redação News conversou com a infectologista Andréa Beltrão, que nos fala sobre a importância de combater o preconceito e os mitos que são criados em torno do vírus. “Quem tem o vírus realmente nem sempre tem a doença (Aids), pois o período de incubação é muito longo. Muitos descobrem que têm a doença por acaso, sem apresentar quaisquer sintomas. Em geral, a carga viral é baixa e o risco de transmissão é menor. Já os pacientes que têm a doença instalada, apresentam uma carga viral mais elevada e o risco de transmissão é maior, se houver contato com secreções. Não existe transmissão pelo abraço e beijo, exceto se houver lesões”, oberva a especialista.

Hoje é possível sim ter o vírus levando uma vida saudável (alimentação, atividade física, equilíbrio emocional), usando todas as medicações, comparecendo nas consultas, a doença fica controlada.

Andreá Beltrão, infectologista 

O diagnóstico e o tratamento precoce são muito importantes e também é fundamental que os pacientes façam uso dos antirretrovirais, sem esquecer ou abandonar o tratamento, para que a doença não evolua. É necessário também, que os pacientes sejam sempre acompanhados por profissionais de saúde e que estejam em dia com a realização de exames de rotina, a contagem de linfócitos CD4, na prática de exercícios físicos e uma alimentação equilibrada. 

O paraense Naldo Silva é coordenador da Pastoral da Aids no Pará e descobriu há 28 anos que carregava o HIV. “Quando eu descobri, tínhamos poucas informações e ter Aids era tida por alguns como se fosse uma sentença de morte. E há quase 30 anos que estou PVHA (pessoa vivendo com hiv aids), ainda temos pessoas que têm esse pensamento. Eu encarei de boa e comecei logo a me tratar e utilizar tudo o que o serviço oferecia na época, que não tinha toda a estrutura que temos hoje”, conta Naldo. 

Hoje, aos 48 anos, Naldo luta por melhorias no atendimento público e contra a ausência de políticas públicas relacionadas ao assunto no Pará. “Para você ter uma ideia, tínhamos apenas uma unidade para tratamento, que era a URE Aids. O local já era um terror para muitos. Ficava acoplado ao hospital Barros Barreto, ao lado do IML e na frente tínhamos muitas funerárias e o Cemitério de Santa Isabel. Um verdadeiro horror pra quem iniciava o tratamento naquele momento. Fora que o preconceito sempre foi e infelizmente ainda é o maior problema que nós enfrentamos na AIDS”, recorda. 

Eu venho observando, que as políticas do estado, do município, do governo federal, estão se precarizando ao longo do tempo. E quando eu falo de relação política precarizada, por exemplo, é que antes desse governo entrar, do governo Bolsonaro, nós tínhamos alguns acessos a relação, mais política. No caso do governo federal, nós tínhamos o Foro de Aids Nacional, funcionando com entradas para acessar tudo o que diz respeito ao nosso tratamento, inclusive acompanhar o mesmo e com esse governo nada disso mais foi feito.

Naldo Silva, coordenador da Pastoral da Aids do Pará. 

Segundo levantamento feito pelo Jornal O Liberal, em Belém, há somente cinco médicos para cerca de 10 mil pessoas vivendo com HIV/Aids atendidas pelo serviço de atendimento especializado, da Secretaria Municipal de Saúde (Sesma). Casa Dia atende a infectados por HIV/Aids que são diagnosticados na rede municipal de saúde (atenção básica) e no Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) de Belém. Se o resultado for positivo, o usuário é diretamente encaminhado e matriculado no Casa Dia.

A Sespa informa que o atendimento de pacientes é realizado pelos Serviços de Atenção Especializada (SAES) nos municípios que o disponibilizam. As demais localidades que não o possuem, os pacientes são encaminhados ao SAE mais próximo ou via Regulação, para a Unidade de Referência Especializada em Doenças Infecciosas Parasitárias Especiais (Uredipe), em Belém, que é a referência estadual para o atendimento desses casos.

Na luta contra o vírus, toda "Arte Pela Vida"

O Comitê Arte pela Vida luta, há 26 anos, em prol de quem convive com HIV e Aids no Estado do Pará. O grupo que é formado por mais de 90 voluntários, promove diversas ações ao longo do ano para garantir doações de roupas, brinquedos, alimentos e equipamentos hospitalares para crianças, jovens e adultos assistidos pela Unidade de Referência Especializada em Doenças Infecciosas e Parasitárias Especiais (Uredipe). 

O Redação News entrevistou o coordenador do projeto, Francisco Vasconcelos. Ele conta como foi o início do comitê. “O Arte pela vida surgiu a partir do momento que um grande amigo nosso, lá em 1996, contraiu o vírus HIV. Naquela época, nós tínhamos muito pouco tratamento. E aí surgiu a ideia para ajudar esse amigo que era diretor, ator, jornalista, de unir forças. Aí surgiu a ideia de fazer um show para angariar fundos para que ele pudesse ir a São Paulo para fazer um tratamento paliativo e que ele pudesse ter um melhor atendimento naquele momento”, explica o coordenador.

Francisco diz que foi quando os amigos se uniram, muitos deles artistas, e fizeram um grande espetáculo, que reunia música, teatro e dança. “Foi um verdadeiro sucesso! E aí nós resolvemos colocar o nome do show de Arte pela Vida. Inicialmente foi um comitê formado por artistas e jornalistas, que surgiu para este show. E por fim, nós conseguimos mandá-lo para São Paulo. O sucesso foi tão grande, que a gente viu que poderia ajudar outras pessoas, que começavam a ser infectadas e amigos nossos mesmo, do teatro, da música, enfim, que estavam também sendo cometidos pelo HIV e aí nós não paramos mais”, relata Francisco. 

De fato, o grupo não parou mais e começou a organizar outras ações, com eventos que reuniram voluntários para as festas de datas comemorativas, trazendo informação para a comunidade, que também se empenhava a ajudar voluntariamente. De acordo com o Francisco, a participação dos voluntários se dá em dois sentidos: assistencialismo, que inclui as doações e o acolhimento; e prevenção, com as ações de conscientização.

A gente começou também a desenvolver atividades artísticas, oficinas, rodas de conversa, enfim, promovemos atividades, festas, tudo que pudesse ajudar e também manter uma autoestima. De certa forma, naquele momento tão sofrido da doença.

Francisco Vasconcelos, coordenador do Comitê Arte Pela Vida

Arte pela Vida (Foto: Arquivo do projeto)
Arte pela Vida (Foto: Arquivo do projeto)

Desmentindo boatos e dissolvendo preconceitos

Importante lembrar que ainda não há cura para o HIV, mas se as orientações forem seguidas da maneira correta podem resultar no controle da infecção e na diminuição da carga viral no organismo para um nível que chamamos de indetectável, o que significa que o vírus deixa de ser transmitido. A pessoa soropositiva pode não desenvolver Aids se realizar o tratamento adequado. 

Alguns avanços científicos têm possibilitado que pessoas que convivem com o vírus da imunodeficiência humana (HIV) tenham melhor qualidade de vida.  Um novo estudo apresentado em outubro de 2022 na IDWeek Conference in Washington, nos Estados Unidos, mostrou que começar o tratamento quando a infecção pelo HIV está no início, ou seja, quando o sistema imunológico é mais forte, proporciona melhores resultados para a saúde.

Segundo a infectologista Andréa Beltrão, “alguns trabalhos estão sendo realizados no sentido de utilizar uma associação mais potente de antirretrovirais. Essa associação de medicamentos teriam como objetivo destruir as formas mais resistentes do vírus".

Vale destacar ainda que é mito dizer que pessoas que convivem com HIV morrem cedo. Indivíduos soropositivos que aderem ao tratamento, vivem tanto e tão bem quanto pessoas que não possuem o vírus no corpo, pois fazem tratamentos contínuos de saúde. Quanto mais cedo é detectada a presença de HIV no organismo e quanto antes é iniciado o tratamento, maiores  são as chances do indivíduo viver normalmente. 

É mito também pensar que o vírus pode ser transmitido via oral, abraço ou aperto de mão. Mesmo com as campanhas de conscientização, muitas pessoas ainda  acreditam que a infecção pode acontecer via oral ou por contato físico. A transmissão só ocorre com a  troca de fluidos corporais com pessoas infectadas pelo vírus, como sangue, sêmen, fluido vaginal e leite materno que não estão indetectáveis. E não, mosquitos também não transmitem o vírus. 

Você sabia que pessoas com HIV indetectável e com tratamento em dia podem ter filhos? Os avanços científicos e o tratamento antirretroviral permitem que qualquer pessoa soropositiva tenha filhos saudáveis e de maneira segura, justamente porque quem tem carga viral indetectável, não transmite o vírus. Segundo especialistas e infectologistas, a comprovação de que estar indetectável não transmite o vírus é a coisa mais revolucionária na história da epidemia de aids. No entanto, a orientação dos especialistas é para que os pacientes informem os seus médicos de que desejam ter filhos. O profissional pode ajudar muito neste momento, especialmente se o casal viver uma relação sorodiscordante (quando um tem HIV e o outro não). 

1° de dezembro é o Dia Mundial de Luta Contra a Aids, data instituída em 1988 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como momento simbólico de conscientização para todos os povos sobre a pandemia de Aids. A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) explica que “esta data constitui uma oportunidade para apoiar as pessoas envolvidas na luta contra o HIV e melhorar a compreensão do vírus como um problema de saúde pública global”. Estamos também no Dezembro Vermelho, que é uma campanha nacional, instituída pela Lei nº 13.504/2017, que promove a prevenção, assistência, proteção e promoção dos direitos humanos das pessoas que vivem com HIV/AIDS e outras infecções sexualmente transmissíveis.

Arte pela Vida (Foto: Arquivo do projeto)
Arte pela Vida (Foto: Arquivo do projeto)

 

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