A luta pelo amor livre no Brasil

Mais de 11 mil casamentos civis LGBTQIA+ são registrados em 2022 no país

07/01/2023 às 16h13 Atualizada em 07/01/2023 às 16h24
Por: Lucas Duarte
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Ivo Veras e Matheus Assis, casados (Foto: Ana Lu Rocha)
Ivo Veras e Matheus Assis, casados (Foto: Ana Lu Rocha)

A formalização do casamento para mim é um passo muito importante, pois a nossa sociedade ainda é cheia de preconceitos conosco.

Ivo Veras, advogado.

No dia 13 de dezembro, o presidente dos Estados Unidos Joe Biden sancionou a lei que protege o casamento gay em seu país. Os direitos e as lutas da comunidade LGBTQIA+ ainda têm muito a avançar, mas nesta reportagem vamos falar sobre o casamento Lgbtqia+, que vem ganhando espaço nos últimos anos em vários países e já é permitido em pelo menos 30. 

No Brasil, ainda não existe legislação sobre o casamento Lgbtqia+, e nenhuma lei voltada ao público foi aprovada no Congresso desde 1988. Mas em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo gênero. Em 2013, foi a vez do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) garantir aos casais homoafetivos o direito ao casamento civil, publicando uma resolução que proíbe cartórios de se negarem a realizar os casamentos. Ações que possibilitaram o aumento da união e de histórias de aceitação e de luta contra o preconceito. 

O advogado paraense Ivo Veras casou com o fotógrafo Matheus Assis em março deste ano, eles acreditam que o casamento foi um passo de amor muito importante e o Ivo aceitou compartilhar essa história de amor. "O Matheus enviou solicitação de amizade nas redes sociais em 2016, eu não dei atenção e ele acabou desistindo. Mas no final de 2016, eu o vi no Instagram e achei ele super bonito e charmoso, eu o segui e começamos a conversar".

"Marcamos de nos encontrar pessoalmente em um shopping de Belém, primeiro ele ficou nervoso e decidiu ir embora antes de eu chegar, mas logo voltou quando imaginou que eu poderia ser a sua outra metade. E quem diria que ele estava certo! Nos conhecemos, conversamos e daí em diante o shopping passou a ser o nosso point favorito para nossos encontros, sempre estávamos lá, comendo, passeando, conversando ou assistindo filmes", conta Ivo.

E o amor foi tão forte que casamento foi inevitável e eles reforçam todos os dias a importância dessa conquista. "Então, o casamento civil veio pra equalizar esse amor, dizer para todos que podemos sim, casar, ter nossos filhos, formar uma família, ainda que, tal direito tenha sido adquirido em razão de uma tentativa de equalizar o que não está na legislação, mas pelo menos, é um passo para diminuir o sofrimento que muitos de nós passam/passaram", destaca.

Ivo Veras e Matheus Assis, casados (Foto: Arquivo pessoal)
Ivo Veras e Matheus Assis, casados (Foto: Ana Lu Rocha)

De acordo com os dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), que representa a classe de Oficiais de Registro Civil, em 2022 (até o mês de novembro), o número de casamentos Lgbtqia+ no país foi de 11.343, representando um aumento de mais de 30% em relação ao ano de 2020 (8.634 casamentos Lgbtqia+). No Pará, também no ano de 2022 (até novembro), o número é de 289 matrimônios. 

O Redação News conversou com o advogado João Jorge Neto, especialista em Direitos Humanos e Diversidade pela UFPA e Presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB-PA. O especialista reforça que no Brasil "não há uma Lei regulando, disciplinando ou regulamentando nem a união civil e nem o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, seja por questões de orientação sexual ou identidade de gênero".

"O que temos é as decisões do STF de 2011 e a do CNJ de 2013, que gerou o direito a partir da interpretação da Constituição, considerando que não há vedação para a População LGBTQIAP+ em buscar segurança jurídica nas relações homotransafetivas, já que na Carta Magna, o casamento entre homens e mulheres é exemplificativo, não impossibilitando que as demais cidadãs e cidadãos possam também ter esse direito, sob pena de ferir a própria Constituição, os direitos individuais e coletivos e os seus princípios", afirma o advogado.  

Assim, desde 2011, é um direito tanto a união civil quanto o casamento civil ou a transformação da união em casamento de acordo o direito jurisprudencial a partir da decisão do STF que também entendeu que todos os direitos previstos na Constituição devem também ser garantidos para a População LGBTQIAP+.

João Jorge Neto, advogado.

Para Ivo Veras, o ato do casamento gera grandes consequências no mundo jurídico, "pois para um casal hétero é muito simples quando se encontra perante um problema de reconhecimento de união estável, pois para a sociedade é padrão esse tipo de relação que quase nunca precisam de muitas provas, às vezes uma simples declaração resolve", expõe. 

"Agora quando a situação vira para um casal homoafetivo, acabamos por perder benefícios, por exemplo, de companheiros que há muito viviam juntos, mas que por algum motivo não chegaram a formalizar a sua relação, ou com a morte de um deles, acabam ficando desprotegidos na lei, por uma questão cultural arraigada de preconceito, que burocratiza ainda mais os procedimentos para o reconhecimento dessa relação dita como - fora do comum", desabafa Ivo Veras.

Para quem deseja realizar o casamento, o advogado João Jorge Neto informa que não há nenhuma diferença no processo, pois os procedimentos e documentos solicitados são os mesmos para qualquer pessoa que vá ao Cartório requerer o reconhecimento da União Estável ou celebração do Casamento Civil. "O que muda são os procedimentos de acordo com a escolha do casal e também o regime de bens, pois a União Civil tem legislação própria e difere em alguns pontos do Casamento Civil", alerta.

Uma orientação do advogado é que após a tomada de decisão do casal, "o ideal é procurar um profissional de direito especialista em Diversidade Sexual para receber as orientações jurídicas que envolvem a escolha da União Civil ou Casamento Civil e sobre regime de bens e depois o casal e duas testemunhas maiores de 18 anos podem comparecer ao Cartório de Registro Civil da sua região. A orientação, no entanto, é ir entre 30 e 90 dias antes da data prevista para a cerimônia. Essa antecedência é necessária para que seja realizada a habilitação para o casamento”" 

A jornalista Sanara Santos está se preparando para o casamento com o cozinheiro Hernani Guimarães. Ela acabou de noivar, mas diz que o noivado nunca foi o sonho dela inicialmente, enquanto mulher trans. "Mas quando a gente encontra alguém e sabe que está disposto a correr com você, caminhar, a ser parceiro, você começa a desenhar, a costurar uma vida em conjunto. Então, a decisão de - vou noivar para me casar - surge muito desse encontro, que é único para mim. Que é romântico, mas também libertador", afirma ela. 

Amar é resistir, né? Uma referência para mim é Bell Hooks, uma escritora e ativista estadunidense, que fala muito sobre o amor como uma forma de transgressão e amar como uma forma de educação. É importante falar sobre novos amores, novos formatos de amores, de relacionamentos, eles têm que ser cultivados e muito celebrados, porque é assim que a gente usa o que é o tradicional para romper com o mesmo, saber transformar isso em uma coisa mais inclusiva.

Sanara Santos, jornalista.

Sanara conta como está a preparação para o grande dia. "Estamos juntando dinheiro para fazer tudo acontecer, porque a gente quer fazer uma celebração com amigos, com os familiares.  Então, está sendo muito importante para mim. Eu noivei na “casa do povo”, em São Paulo, que é um centro cultural que foi construído por judeus que vieram para o Brasil fugindo do nazismo e criaram ali uma cultura de utilizar esses espaços como uma forma de resistência", informa.

Importante citar que a casa do povo é habitada por grupos, movimentos e coletivos, alguns há décadas e outros mais recentes, e atua como um centro de cultura em São Paulo e se adapta às necessidades de cada projeto, de forma a atender tanto associações do bairro quanto propostas artísticas fora dos padrões. "O espaço já sediou outros noivados e outros casamentos, em outras culturas e a casa tem muito tempo de resistência. Então, foi muito gostoso, porque quando eu pensei em um lugar para fazer isso, eu pensei nesse espaço", conta. 

"Era muito significativo para mim que fosse lá e eles abraçaram de uma forma muito gostosa. Falaram que há muito tempo não tinham a prática de abrir o espaço para eventos de noivado, mas o noivado de uma pessoa trans seria muito significativo e empoderador para o local. E eu, como frequentadora há quase 5 anos, a minha vida foi se transformando junto com esse lugar, então é uma relação muito próxima", diz a jornalista.

Os noivos Hernani Guimarães e Sanara Santos (Foto: Arquivo pessoal)
Os noivos Hernani Guimarães e Sanara Santos (Foto: Arquivo pessoal)

Sanara fala também sobre a importância de fortalecer os laços afetivos. “Eu acho que a importância para quem é da população Lgbtqia+ é que existe amor, e não é só esse amor do casamento, mas praticar o amor, construir novas famílias”, expressa. 

Amor diverso que transborda a importância da luta Lgtbtqia+, que está longe do fim e que precisa conquistar muitas outras coisas, como respeito, igualdade e espaço. "Quando a gente escolheu os padrinhos, escolhemos pessoas que a gente queria trazer para dentro da nossa família, para construir uma família nova, sem preconceitos, sem separação, com muita união, diversidade em raça, em classe. Então, foi uma coisa de construção, porque é esse espaço que a gente quer construir, então é importante fazer do jeito que a gente quiser, trazendo essas pessoas para perto".

No meu noivado, foi importante ver outras pessoas lgbt’s, homossexuais, lésbicas ali, pessoas trans, se aproximando e a gente falando, caramba! Quem está aqui nessa mesa bebendo e comendo com a gente é a nossa família, é quem a gente quer se conectar, e é sobre isso, é sobre a gente recuperar algo que é nos negado diariamente, que é a família, porque é muito importante estarmos juntos em momentos como este.

Sanara Santos, jornalista.

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