As Themônias tipicamente paraenses

Uma identidade drag que mistura montação, estética amazônica e grotesca nas ruas de Belém

20/01/2023 às 17h00 Atualizada em 20/01/2023 às 17h15
Por: Lucas Duarte
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La Falleg (Foto: Tarcísio Gabriel)
La Falleg (Foto: Tarcísio Gabriel)

La Falleg Condessa é uma artista Drag Queen que surgiu em 2015 e atua como agente cultural no estado do Pará, juntamente com uma rede de artistas amazônicos cheios de potencial e diversidade. O processo de descoberta enquanto drag, veio por meio da atuação no Coletivo NoiteSuja, em Belém e como ela mesmo diz, “juntos, usamos a arte como instrumento de manifestação político artístico cultural, questionando os valores da sociedade, repensando os espaços da cidade e, assim, construindo um ativismo em prol dos direitos LGBTQIA+.” 

“Passei a nutrir o desejo de me montar, o que se concretizou em umas das festas do coletivo, especificamente, a festa intitulada “Dragween” que ocorreu no final de 2015. O processo de criação da persona drag foi contínuo, desde a maquiagem até a produção de figurino e adereços, que foram se transformando ao longo dos anos”, conta.   

Leonardo Botelho é quem divide toda essa trajetória pois é o artista responsável por personificar ‘La Falleg’ e conhece melhor do que ninguém as características que gosta de imprimir à sua drag. “A maquiagem é bem polida, e um tanto quanto exagerada, com contornos bem marcados, sobrancelhas arqueadas, lábios grandes, bem desenhados, e em sua maioria, na cor vermelha”. Aleixo conta que seus figurinos são sempre extravagantes, “com muitas camadas e babados, para conferir volume e esconder os traços cotidianos de um corpo cismasculino homossexual”, descreve

Os dicionários descrevem as Drag Queens geralmente como “homens que se vestem de mulher”, mas o significado e os estilos que representam não cabem apenas nessa descrição, elas vão muito além e afirmam e caracterizam sua arte também em seus territórios de origem. Existem diferentes tipos de Drags, e isso significa que não existe uma rotulação. Com toda a diversidade, o mundo Drag é muito aberto e genuíno para o artista representar e ser quem quiser. Não existe um modelo no qual precisa se encaixar, muito menos uma criatividade limitada. Assim, a cada dia que passa podem ser criadas novas categorias. 

“A arte drag é importante pois surge da necessidade de criar um estado de ‘entre’ perante a ditadura da imposição de gênero. Busca-se aí a liberdade de expressão dos corpos sexodissidentes, que utilizam seu corpo e sua subjetividade como principal fonte de trabalho”, afirma Botelho. 

Além de um posicionamento artístico e político, é uma necessidade cênica imposta pela sociedade e pela moral vigente, uma vez que são colocados em cheque todos os valores e princípios que estruturam a sociedade. Seja na esfera espetacular ou política, o artista está presente e atuante, lutando para despertar uma sociedade adormecida e se adaptando às demandas do mundo volátil contemporâneo.

Leonardo Botelho, agente cultural.

As Themônias construindo sua própria estética.

A arte drag tem forte presença no estado do Pará, e traz peculiaridades por conta do território em que está inserida. Segundo Leonardo Botelho, “ser drag na Amazônia e em Belém é construir a própria expressão artística”. Os artistas levam sempre em conta as características da capital paraense como as lendas, os rios, as chuvas, o calor, o folclore, a música, os cheiros, a gastronomia, e uma série de simbolismo que representam essa territorialidade.

As Themônias se tornaram uma forte expressão artística, uma dessas novas categorias criadas, que surgiu no território paraense em 2013 e está se espalhando pelo Norte do Brasil. De acordo com o artista Juliano Bentes, o movimento tem seu berço no coletivo NoiteSuja, “que começou com uma festa de livre montação, e com o tempo foram se desenvolvendo vários vieses e, propriamente, deixando de ser apenas sobre montação e passando a ser uma poética própria, uma forma de fazer arte e ver o mundo a partir dos nossos atravessamentos territoriais, de corpos dissidentes, demonizados e tudo mais”, relata. 

A gente tem muitas referências de drags e artistas daqui de Belém, principalmente de pessoas próximas, chamamos isso de retroalimentação, que é um dos pilares do movimento, se alimentar do processo criativo umas das outras.

Juliano Bentes, artista.

Themônias misturam conceitos e artes diversas (Foto: Acervo do grupo)
Themônias misturam conceitos e artes diversas (Foto: Tarcísio Gabriel)

Para o grupo, ser Themônia é um conceito, uma ideia, um posicionamento político, é um movimento de corpos divergentes que encontram na arte da montação a oportunidade de quebrar os padrões normativos de comportamento e gênero na sociedade. De acordo com Juliano, “a arte drag na Amazônia ainda é muito vista como acessório do movimento LGBT, é preciso que a gente se reconheça como artista para dar conta dessa potência.”

“A drag é uma artista que narra o seu tempo e seu espaço, portanto é muito frequente vermos performances que falam sobre nossos atravessamentos territoriais, sobre a cidade, sobre situações do dia a dia, assim como sobre a situação política e tantas outras pautas que se cruzam, falar sobre e existir nesse espaço é uma demarcação social, artística e política de que fazemos parte também da cidade, temos direito à ela”, expõe Juliano Bentes.

É importante lembrar que os anos 2000, durante as duas primeiras décadas, foram muito marcados por uma influência de programas de televisão e internet que retratam o universo drag como entretenimento. Foi uma febre em vários países, incluindo o Brasil, onde começaram a surgir festas e grupos que passaram a expandir as possibilidades estéticas e performativas dessa arte e não foi diferente no Pará.

As Themônias surgem com toda sua estética de monstruosidade, misturada com elementos da natureza amazônica, recursos que foram sendo extremamente marcados em seus figurinos e maquiagens, onde destaca-se a grande importância da presença de mulheres cis, trans, não binárias, lésbicas, periféricas e pretas, que começaram a fazer montações na capital e foram ressignificando o estilo drag paraense.  

O Redação News entrevistou a arte educadora Gabriela Luz, que é também representada por sua Eco Sarita Themonia, tendo um trabalho com reaproveitamento de resíduos, transformando-os em suas roupas luxuosas. Gabriela conheceu o mundo drag por meio do teatro e sua primeira experiência de montação foi em 2015, na festa do coletivo NoiteSuja, e continuou em outras festas que surgiram, “a dinâmica de festas, e a produção foi tão grande que começou a gerar custos, tanto financeiro, com os gastos constantes, como criativos, pelas soluções de se fazer essa arte em uma cidade tão quente e espaços mal climatizados”, relata. 

Ela conta que foi preciso repensar alternativas de caracterização para lidar com esses desafios. “Começou com a produção de cílios de papel e o reaproveitamento de outras roupas e acessórios, essa prática foi tão constante que me levou a experimentar o uso de outros objetos como resíduos sólidos”, revela. 

Logo, minha experiência que havia começado como drag chegou a uma nível que de não me identificar nem como drag ou como ser humano, passando a usar o conceito de Themônia para melhor definir minha experiência ao usar objetos e símbolos demonizados socialmente por serem da cultura negra e indígena, além de resíduos e outros objetos e referência amazônica que passaram a me definir enquanto Themônia.

Gabriela Luz, arte educadora

Themônias misturam conceitos e artes diversas (Foto: Acervo do grupo)
Themônias misturam conceitos e artes diversas (Foto: Tarcísio Gabriel)

Drags que carregam em suas expressões artísticas, uma cultura forte e potencializada, que reflete de forma expressiva suas ancestralidades, o imaginário do povo amazônico, as figurinos de carimbó, referências às lendas da região, performando músicas de brega, calypso, tecnobrega, aparelhagem, etc. Uma miscigenação de ritmos e apresentações que se tornam referência para quem quer construir juntamente com elas essa verdadeira revolução estética e política no Norte do Brasil.

É arte que brota de todos os cantos, não apenas da capital. Pandora Rivera Raia, artista que vem do município de Cametá, nordeste do Pará, é uma dessas potências artísticas. Pandora topou dividir um pouco de sua história e referências com o nosso site. “Eu já era chamada de Pandora antes mesmo de me montar. Eu recebi o nome porque eu era louca pela Claudia Raia e por vampiros, o que calhou, pois tempos antes a atriz havia interpretado uma vampira em uma novela e tinha uma filha chamada Pandora”, conta ela. 

Pandora relata que não tinha referência de drags, nem tinha internet na época e não se ouvia falar delas na TV, “eu nunca tinha visto uma drag de perto, o que eu tinha era a referência de duas coisas que eu amava, as misses e as vampiras e quando decidi me montar foi isso que usei”, relata. 

Em fevereiro de 2005, na minha cidade de Cametá, com 11 anos, me montei pela primeira vez no carnaval. Não tinha preparação ou coisa do tipo, eu só queria me montar e fui. Foi muito natural para mim, parecia que eu fazia aquilo há anos; o fazer drag sempre foi extremamente natural na minha vida. Eu começo a me identificar como drag, que na época não se chamava assim, não tinha um termo para aquilo.

Pandora Rivera Raia, artista.

De lá para cá, Pandora conquistou vários concursos de beleza no estado e ela diz que começar cedo foi bom para que chegasse aos 28 anos com a bagagem que tem, “mas também foi tenso, eu era uma criança vivendo um mundo de adultos, sendo cobrada como adulto. Fora que os tempos eram outros, eu era de uma cidade provinciana, de uma família tradicional. Foi um choque nas pessoas”, declara a drag. 

Para Pandora, a drag paraense vive a cultura regional na pele. “A gente no Pará cresce ouvindo sobre lendas e visagens, e não há nada que chegue tão perto desse universo quanto drag queens. Ser drag no Pará é viver a cultura nossa na própria pele, porque não importa o nicho que tu pertença, sempre haverá uma referência local na tua arte. E isso é maravilhoso à medida que a gente faz a história com a nossa história e, também, porque incomoda uma sociedade normativa que não nos quer ocupando espaços, a não ser para alegrar suas festas”, expressa. 

NoiteSuja, a festa

Desde 2013, ter um lugar para expressar toda essa arte que vinha florescendo em Belém se tornou fundamental, e nada melhor do que produzir cultura e festas temáticas. A NoiteSuja surgiu como forma de entretenimento e para artistas drags performaram sua arte. 

Entrevistamos o produtor Maruzo Costa, ele conta que “a NoiteSuja nasceu da vontade de ocupar espaços tradicionais na cidade de Belém com a arte drag como fio condutor dessas insurgências. A arte drag sempre esteve muito ligada às casas noturnas e a noite, daí parte a reflexão sobre o direito à cidade da população LGBTQIAP+”.  

Um dos nossos principais objetivos da festa é fomentar, viabilizar e visibilizar a produção da arte drag na Amazônia, tanto para a arte como um todo quanto para seus atores sociais. Maruzo diz que “Há quase uma década estamos atuando de forma independente, porém consideramos que temos grandes feitos como os festivais, grandes blocos de carnaval, encontros sobre saúde mental da nossa população e mais recente agora a produção de um reality show. O retorno financeiro sempre foi uma batalha, mas seguimos firme ocupando e produzindo arte e cultura com consciência política na nossa cidade”, relata o produtor. 

O produtor da festa ressalta a importância do projeto ir além das festas realizadas. “Hoje a NoiteSuja é um expoente nacional, a gente não produz apenas festas, mas também possibilidades de atuação para os nossos desde sua cadeia produtiva inicial. A exemplo disso temos o II Festival NoiteSuja que está todo disponível no nosso canal do YouTube, onde toda a produção passando por direção, roteirista, equipe de transporte, som e iluminação foi feito por drags. A drag que está no palco sob os holofotes é apenas a cereja do bolo.”

A NoiteSuja vem sendo nesses últimos anos a responsável pelo surgimento de centenas de drags aqui na Amazônia e estamos fazendo o possível para que cada vez mais essas vozes sejam ouvidas através dessa linguagem artística. A NoiteSuja é uma espécie de casulo protetor onde todos os indivíduos que se sentem abraçados pela arte drag podem viver essa experiência que é “se montar”. Estamos conquistando o mundo e a Amazônia é esse caldeirão cultural.

Maruzo Costa, produtor cultural.

Themônias misturam conceitos e artes diversas (Foto: Acervo do grupo)
Themônias misturam conceitos e artes diversas (Foto: Gabriela Luz)

Para Gabriela Luz, “a experiência do coletivo NoiteSuja, demonstra a importância de grupos que se organizam tanto para produção cultural como para gerar reflexão sobre as produções e diálogos que traçamos, especialmente na arte drag, que sempre foi marginalizada, mas que ao se impactar na cena artística independente nos tirou das boates e margens para então ocupar outros espaços, como a universidade e outros de visibilidade e alcance ao grande público. Isso se dá pelo fato de que o movimento tem referência na cultura amazônica, seus símbolos e imaginário, que assim como a arte drag é um território marginalizado”, expõe a artista. 

Às Themônias, à NoiteSuja, vida longa! E que elas sigam representando a arte e a cultura drag paraense com originalidade e territorialidade. A nível de curiosidade, o grupo é instrumento de estudos e pesquisas no Brasil todo, já são mais de 20 pesquisas acadêmicas que trazem elas como referências. Reconhecimento merecido por toda criatividade e vontade de fazer cultura diversa no Norte. 

Esses artistas são criativos e inspiradores, verdadeiras metamorfoses. Alinhando-se com as mais diversas áreas da cultura. O artista Drag Queen se torna uma figura pioneira e confrontativa, rompendo barreiras e desafiando o senso comum, atua como um ser camaleônico, capaz de se moldar criando novos estilos, linguagens e conteúdos. É o sujeito da performance, da arte do estranhamento, da anarquia como expressão artística, do mistério que atrai olhares perturbados, porém, curiosos. A Drag Queen reinventa a si e ao mundo em sua volta.

Leonardo Botelho, artista.

Veja mais sobre o projeto "NoiteSuja".

Esta reportagem foi produzida com apoio do programa Diversidade nas Redações, da Énois, um laboratório de jornalismo que trabalha para fortalecer a diversidade e inclusão no jornalismo brasileiro. Confira as metodologias na Caixa de Ferramentas.

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